PANAPRESS
Agência Panafricana de Notícias
O que difere Kadafi dos outros ...
Dakar, Senegal (PANA) - A partida de qualquer líder, carismático ou não, deixa sempre à sua trás um mundo dividido entre aplausos e choros, entre os que festejam e os que condenam. Num e noutro campo, uns fazem-no honestamente e de consciência limpa, mas outros nem tanto. São muitos os que mergulham fundo nesta emoção de júbilo ou de repulsa apenas por egoísmo, oportunismo ou mesmo ignorância.
Mais de metade de um século após a morte de Adolfo Hitler, é comum ainda hoje encontrar-se gente que, assumidamente, o tem por ídolo e disposta a manter viva a bandeira do nazismo, no mesmo mundo em que esta figura é tida como um dos maiores símbolos da desgraça humana.
Mais recentemente, a execução do maior rosto do terrorismo internacional, Osama Bin Laden, deu lugar a sentimentos de alívio, nalgumas partes do globo, e, noutras, a manifestações públicas de cólera e vandalismo, seguidas de ameaças de perpetuar aquilo que ele, em vida, fazia melhor que ninguém: “defender” o Islão derramando sangue islâmico.
É uma espécie de tradição sacrossanta, facilmente confundível com o princípio do direito à diferença e respeito pela diversidade, e à qual não escapou, como se viu, o fim trágico de Muamar Kadafi, a 20 deste outubro de 2011, e com ele o de 42 anos de poder absoluto e ininterrupto na Líbia.
Foi um fim inglório e humilhante em que ele próprio, em vida, jamais acreditou, de tão convencido do caráter “inabalável” da sua popularidade e do seu carisma, mas que encheu de emoção, orgulho e momentos de festa as ruas de quase todo um país com intermináveis cortejos comemorativos.
Nessa altura, já com Tripoli sem a Televisão de Kadafi e o seu célebre porta-voz Moussa Ibrahim, que se notabilizaram ambos pela velha perícia de “tapar com a peneira” o sol duma rebelião imparável e tonitruante, o omnipresente ambiente festivo final era de escamoteamento impossível.
Mas, invariavelmente, os comentaristas situaram-se nos dois polos opostos. Para uns Kadafi é a questão central, e a crise líbia começa com os primeiros disparos da NATO (Organização do Tratado do Atlântico Norte) que tinham na pessoa do “Guia” o principal alvo a abater por ser o único, dizem eles, que “estremecia e desafiava o Ocidente pela sua independência económica e oratória”.
Estes vêem na morte “heróica” do homem mais uma expressão do expansionismo ocidental com o petróleo no centro como o grande catalisador, sendo tudo o resto apenas um pretexto. Outros, porém, não acham piada alguma numa tal leitura, julgando-a ultrapassada no tempo, e acusando o “Guia” de casmurrice paranóica e megalómana que dificilmente teria outra saída.
Para estes últimos, qualquer veleidade de desafiar o Ocidente consitiui pura demagogia e miragem, e a questão central na Líbia seria, sim, a ameaça de extermínio que pairava sobre a população, tendo a crise começado com os primeiros tiros de Kadafi no seu próprio pé sem os quais não haveria NATO.
Há também quem condene a imprensa no geral por estereotipar a exclusividade da responsabilidade da NATO e do Ocidente pela operação militar na líbia, quando estes agiram como mandatários das Nações Unidas, como organização universal, para além do papel crucial desempenhado por alguns países árabes e pela própria Liga Árabe (LA) que são entes externos ao bloco transatlântico.
Os advogados desta visão destacam ainda que a LA foi uma das primeiras instâncias internacionais a suspender a Líbia em protesto à “postura criminosa” de Kadafi contra o seu povo, e que a última e mais vibrante derrota do grupo de países africanos opostos à ofensiva militar na Líbia ocorreu longe da NATO e do Ocidente mas em plena Assembleia Geral das Nações Unidas, quando tentaram desesperadamente, e em vão, impedir o reconhecimento internacional das novas autoridades líbias.
De qualquer modo, parece haver mais semelhanças que dissemelhanças entre o caso Kadafi e o de muitos pares seus, já caídos ou ainda “sobreviventes”. Para todos eles, os seus olhos nunca viram a tal de ditadura de que os seus povos se dizem vítimas, utilizando argumentos vários para se justificar.
Para já, onde há milhões de habitantes, ninguém devia, em sã consciência, achar-se no único cidadão apto a liderar, como muitos já insinuaram, a tal ponto que a sua retirada ou substituição mergulhe automática ou inevitavelmente os seus países na instabilidade geral, no caos ou na secessão.
Em vez de um diálogo preventivo para mudar a mentalidade governativa, desvaloriza-se os primeiros sinais de descontentamento popular, alegando “instigações” externas, com o povo desqualificado, inabilitado ou mesmo interditado de pensar por si e distinguir, sozinho, o bem do mal.
Quando tudo amadurece, este mesmo povo em nome de quem se reclama a legitimidade para governar ou a quem se implora o voto para obter tal legitimidade passa a “merecer” apodos tão rudes como reacionários, impatrióticos, ingratos, vende-pátrias, traidores, invejosos, drogados e afins, antes de se soltar canhões e carros blindados a serem disparados pelo povo contra o povo.
Cenários como estes são normalmente precedidos de outros sofismas como o da falta de identidade entre as realidades de um e de outro país que, neste caso, seria bastante para infirmar qualquer possibilidade de contágio, mesmo se sabendo que se vive hoje num mundo chamado “aldeia global”.
Por isso, é cada vez mais fácil compreender como toda a sequência de exemplos recentes tão nítidos como a Tunísia, o Egito, a Côte d’Ivoire e agora a própria Líbia de nada serviu para as demais lideranças políticas de vulnerabilidade indisfarçável, entre as quais se destacam hoje as de Bashar al-Assad na Síria e Ali Abdallah Saleh, no Iémen, ao lado de várias outras que preferem a incubação.
As chamadas potências ocidentais que, em tempo de “paz”, são os aliados privilegiados a quem se confia até a guarda das fortunas pessoais e a gestão dos negócios nacionais mais rentáveis, incluindo contratos petrolíferos e de armas, passam, de repente, a bodes expiatórios e laboratórios de ensaios conspiratórios destinados a espoliar as riquezas da casa e instalar o neocolonialismo.
Mesmo a própria organização de todos, a ONU (Organização das Nações Unidas), que às vezes é prolixamente elogiada, juntamente com o Ocidente, quando há uma decisão pró-governamental, que se torna numa música do discurso político oficial como “vitória diplomática”, passa por cúmplice dos Imperialistas ou por um organismo ao seu serviço, quando decide desafiar o poder instituído.
E a mobilização de multidões em comícios públicos para mostrar ao mundo a força e a amplidão do apoio de que se goza entre as massas, mesmo às vezes recorrendo à coação e a outros métodos refinados de corrupção para forçar a aderência popular, transforma-se em denominador comum.
Neste particular, Kadafi ainda foi a tempo de perceber que nem sempre a superlotação dos comícios é sinónimo de apoio popular. Porém, não pôde explicar aos Líbios como conciliaria os seus alardeios anti-imperialismo com as flagrantes revelações da sua estreita colaboração com a Espionagem ocidental documentalmente confirmada pelos arquivos secretos abandonados em Tripoli.
Em sua defesa contra a pressão popular para a sua retirada, ele dizia-se despido de quaisquer cargos públicos dos quais pudesse demitir-se, tais como os de Presidente da República ou chefe do governo, pois ele era apenas um simbólico “líder da Revolução” e todo o poder era exercido pelo povo!
Na mesma senda, os seus pares assumidamente detentores de tais títulos oficiais sempre se escudaram no facto de organizarem processos eleitorais legitimados por órgãos constitucionais legalmente instituídos, mas por eles controlados, como o seu argumento de ouro.
É que, num e noutro caso, fica a impressão de que o exercício do poder pelo povo é algo meramente formal, bastando estar consagrado num instrumento oficial qualquer, ou então algo que se esgota apenas na participação em eleições “democráticas”, que, independemente do rumo dado pelos governantes ao mandato daí resultante, informa um cenário de ausência de ditadura.
Ditadura é definida por alguns especialistas como designativa de regimes antidemocráticos ou governos com participação popular inexistente ou inexpressiva e poder concentrado numa única pessoa, em vez da sua dispersão por órgãos distintos tais como o legislativo, o executivo e o judicial.
Para estes especialistas, por exemplo, a marca deste tipo de regimes é a ilegalidade, entendida como “a violação das leis e regras pré-estipuladas” ou a revogação de legislação vigente seguida da sua substituição por “regras estabelecidas conforme as conveniências da perpetuação do poder”.
O controlo social e político despótico pelo uso da força e da fraude, bem como a intimidação, o terror e o desrespeito pelas liberdades civis estão, segundo eles, entre os métodos utilizados para conquistar ou manter o poder em tais regimes, tornando a sua sucessão “sempre difícil”.
Traços do género são, pois, identificáveis nas preocupações expressas num comovente discurso feito na sede da ONU, em Nova Iorque, a 25 de fevereiro de 2011, pelo então representante permanente da Líbia junto desta organização universal, Abdelrhamane Shalgham.
Shalgham quase fez lagrimar a audiência de tanto emotiva a sua alocução em que comparou Muamar Kadafi a personalidades tão tristemente célebres como Hitler, Pol Pot e Mussolini, o que lhe valeu a inédita decisão em que o Conselho de Segurança (CS) da ONU, pela primeira vez na sua história, aprovou por unanimidade uma resolução (1970) contra o regime de um Estado-membro.
A sua intervenção foi marcada pela citação de algumas das frases mais sádicas de Pol Pot e Hitler para ilustrar a “monstruosidade” que Kadafi passou a representar para o seu povo, e suplicar que os membros daquele órgão fizessem alguma coisa “para salvar a Líbia (...) e travar o massacre de inocentes”, em referência à eclosão da guerra civil no seu país.
Dizia Shalgham, numa dessas citações, que, quando Hitler convoca um dos seus generais para lhe anunciar a sua decisão de invadir a então União Soviética, e este lhe informa que a operação iria custar dois milhões de vidas humanas, a resposta de Hitler foi perguntar ao seu interlocutor “que importância tem morrerem dois milhões de Alemães se é para defender a glória do Führer (Guia) ?”
Shalgham, um antigo ministro dos Negócios Estrangeiros de Kadafi, assimilou aquelas palavras de Hitler ao conteúdo das mensagens que Muamar Kadafi dirigiu ao seu povo, nos primeiros dias da revolução líbia, com recados do tipo “ou continuo a governar-vos ou vos mato e extermino todos”, ou ainda, e já mais paternalista, “o meu povo está pronto a morrer por mim porque me ama muito”.
A sua complexidade de um ser relativamente mais sanguinário, intolerante e liberticida em casa e associado a um passado terrorista e desestabilizador além-fronteiras, onde deixou centenas de famílias enlutadas, em contraste com a sua generosidade de distribuir caridades entre alguns famintos de África parece constituir, talvez, a face que mais distingue Kadafi dos seus colegas.
As similitudes são claramente predominantes. Elas vão desde a alergia a críticas à indisponibilidade de aconselhamento, passando pelo complexo de superioridade, que acaba por contaminar os seus próximos, descendo até aos escalões inferiores da pirâmide do poder, onde as qualidades mais “nobres” são a arrogância, o desprezo e o exibicionismo, isto é, tudo menos humildade.
Segundo alguns dos seus antigos colaboradores, Muamar Kadafi “não ouvia conselhos de ninguém, até mesmo dos seus amigos africanos”, incluindo-se neste grupo de amizades “aqueles chefes de Estado que sempre pensaram ser amigos dele mas que eram todos detestados por ele”.
Ele nunca escondeu o seu desprezo pelos seus homólogos árabes e africanos muitos dos quais via como traidores e ingratos, sobretudo os de países que ele dizia ter muito ajudado a libertar-se do jugo colonial mas que se recusaram depois a apoiar o seu projeto de Estados Unidos de África.
Quanto à indisponibilidade de aconselhamento, ela pode ser voluntária ou involuntária, mas terá produzido vários tipos distintos ou híbridos de liderança política, que se podem manter invariáveis ou variáveis consoante as circunstâncias, mas cujo ponto de convergência é a substituição do poder institucionalizado pelo poder personalizado, ou seja, do poder das leis pelo poder dos homens.
Ela traduz-se na ausência de conselheiros de facto no círculo institucional e oficial em torno do chefe, porque mesmo existindo, fisica e formalmente, eles não produzem, absolutamente, conselho algum.
O aconselhamento está sempre indisponível, porque, num modelo de liderança do tipo kadafista, por exemplo, onde o chefe é hostil às opiniões dos seus colaboradores, a visão dele dos factos é a melhor e a única válida, e as pessoas que o rodeiam, por mais fiéis que se revelem, são permanentemente suspeitos e vistos como potenciais opositores, preferindo daí confiar mais no parentesco.
Surge assim a subalternização da equipa governamental formal pelo esvaziamento dos seus poderes, que são transferidos para a família do chefe como a detentora de facto da legitimidade de exercício do poder de decisão, limitando aquela à sua legitimidade de título o que se refletirá na irrelevância ou nulidade dos seus pronunciamentos ou atos, quando não autorizados pela “nobreza”.
Num segundo modelo, o principal traço caraterístico é a existência formal de uma constelação de conselheiros que, quase sempre, gozam da inteira confiança do chefe até lhes atribuir poderes especiais que fazem deles a verdadeira equipa executiva de facto sem a qual o país não funciona.
Revelam-se naturalmente bem informados e, nalguns casos, muito sofisticados intelectualmente. Mas, nos momentos mais críticos e decisivos, eles omitem-se. Nunca dizem a verdade ao chefe ou por medo de o contrariar ou por admitir a sua impreparação para consequências ou sacrifícios “desagradáveis” decorrentes da eventual tomada da decisão certa e por eles aconselhada.
Preferem que o chefe avance a sua própria ideia-proposta para depois se encarregarem de arrumar os argumentos técnicos visando fundamentar e justificar, diante da sociedade, a sua pertinência e conformidade à lei, ainda que tal conduza a leis mortas, ou mesmo quebrando determinados tabus pré-existentes que, a partir dessa altura, deixam de o ser porque já abordados pelo chefe.
O mínimo que podem fazer em termos de conselho é desaconselhar o chefe de responder a “provocações”, limitando os seus pronunciamentos públicos e a sua exposição tal como eles, que são normalmente raros “no ecrã” e também raramente falam publicamente sobre questões delicadas do momento, para salvaguardar a sua credibilidade e evitar o ridículo de defender o indefensável.
São ambientes de trabalho em que também não faltam intrigas e em que pedir demissão é uma afronta imperdoável que coloca o autor às portas do ostracismo, com a ajuda de alguns “infiltrados” dispostos a tudo fazer para o chefe perder confiança nos outros, normalmente os mais dotados.
O terceiro modelo corresponderá a um tipo de conselheiros desinformados e estagnados no tempo. Mais preocupados com a manutenção dos postos do que com a proteção do chefe que fingem defender, deixaram de ser credíveis perante a sociedade que os tem por uma grande desilusão.
São vítimas da sua desonestidade intelectual ou da cronicidade da sua mentalidade de guerra fria que colidem com a necessidade de adaptação aos novos tempos de mudança, que, para eles, significam mudar para pior, para a catástrofe, e que tem de ser evitada a todo o custo e por todos os meios.
Para estes, toda e qualquer sublevação social é vista e equacionada no prisma da defunta guerra fria, em que as potenciais forças da mudança são reacionárias e subversivas, sempre associadas à obra de forças ocultas, normalmente patrocindadas por potências estrangeiras, pelo que todo o seu esforço intelectual é consagrado à fabricação de “provas” deste subversionismo para mostrar trabalho.
Até comportamentos elementares e banais como as greves dos trabalhadores e outras reivindicações sociais normais passam a ter o mesmo tratamento e a mesma interpretação diversionista, criando na sociedade o pânico, o medo, a desconfiança generalizada e o excesso de zelo e de autocensura.
Promove-se uma oratória que relativiza o dever do Estado de respeitar a lei e os direitos fundamentais dos governados e escamoteia o direito destes de resistir e rebelar-se contra o esmagamento das suas garantias constitucionais, em arrepio da doutrina jurídica moderna.
No plano da política externa, eles estão muito propensos a conduzir o país progressivamente para o isolamento, porque as suas análises, enquanto os rostos mais visíveis e as vozes mais ouvidas internamente, procuram incutir no cidadão a ideia de um mundo e de uma comunidade internacional avessos ao país, por inveja, enquanto se vangloriam das posições do chefe como as mais visionárias.
Assim, quase sempre o chefe é empurrado para a ridicularização com aparições públicas menos recomendáveis, usando de discursos mais ou menos ocos e fora de contexto cuja impertinência é amplamente percetível a partir mesmo do mais comum dos cidadãos sem grande esforço literário.
Com esta postura, fomenta-se inconscientemente a contestação popular contra o chefe e a sua manutenção na desconfiança permanente em relação ao seu público, bem como a sua limitação intelectual que conforta o seu conservadorismo e pessimismo, fazendo-o acreditar piamente numa quase exclusiva lealdade de tais conselheiros, que são, no fundo, os seus verdadeiros “carrascos”.
Só muito tarde de mais, perceberá o chefe que o pior inimigo do poder é o próprio poder e nunca o povo. Que é o próprio poder que fica casmurro e insensível ao clamor das massas ou porque é por natureza casmurro ou porque assim ficou por maus conselhos ou por ausência de conselhos.
A experiência mostra que da longa lista de líderes até aqui derrubados de forma humilhante e trágica, mesmo os que tiveram uma oportunidade de evitar a humilhação não o fizeram. Preferiram a hecatombe, sem nenhuma preocupação pelas vidas humanas, até das suas próprias famílias, que, também, nunca souberam, aparentemente, dar bons conselhos no momento certo.
Será dar razão a Thomas Hobbes, com a sua profética constatação de há mais de 360 anos, no seu famoso “Leviathan”, quando elegeu como primeira inclinação geral humana “um desejo perpétuo, e sem descanso, de adquirir poder e mais poder, desejo esse que só cessa com a morte” tal como em Kadafi e outros?
Por Fred Cawanda (Panapress)
-0- PANA IZ 15nov2011
Mais de metade de um século após a morte de Adolfo Hitler, é comum ainda hoje encontrar-se gente que, assumidamente, o tem por ídolo e disposta a manter viva a bandeira do nazismo, no mesmo mundo em que esta figura é tida como um dos maiores símbolos da desgraça humana.
Mais recentemente, a execução do maior rosto do terrorismo internacional, Osama Bin Laden, deu lugar a sentimentos de alívio, nalgumas partes do globo, e, noutras, a manifestações públicas de cólera e vandalismo, seguidas de ameaças de perpetuar aquilo que ele, em vida, fazia melhor que ninguém: “defender” o Islão derramando sangue islâmico.
É uma espécie de tradição sacrossanta, facilmente confundível com o princípio do direito à diferença e respeito pela diversidade, e à qual não escapou, como se viu, o fim trágico de Muamar Kadafi, a 20 deste outubro de 2011, e com ele o de 42 anos de poder absoluto e ininterrupto na Líbia.
Foi um fim inglório e humilhante em que ele próprio, em vida, jamais acreditou, de tão convencido do caráter “inabalável” da sua popularidade e do seu carisma, mas que encheu de emoção, orgulho e momentos de festa as ruas de quase todo um país com intermináveis cortejos comemorativos.
Nessa altura, já com Tripoli sem a Televisão de Kadafi e o seu célebre porta-voz Moussa Ibrahim, que se notabilizaram ambos pela velha perícia de “tapar com a peneira” o sol duma rebelião imparável e tonitruante, o omnipresente ambiente festivo final era de escamoteamento impossível.
Mas, invariavelmente, os comentaristas situaram-se nos dois polos opostos. Para uns Kadafi é a questão central, e a crise líbia começa com os primeiros disparos da NATO (Organização do Tratado do Atlântico Norte) que tinham na pessoa do “Guia” o principal alvo a abater por ser o único, dizem eles, que “estremecia e desafiava o Ocidente pela sua independência económica e oratória”.
Estes vêem na morte “heróica” do homem mais uma expressão do expansionismo ocidental com o petróleo no centro como o grande catalisador, sendo tudo o resto apenas um pretexto. Outros, porém, não acham piada alguma numa tal leitura, julgando-a ultrapassada no tempo, e acusando o “Guia” de casmurrice paranóica e megalómana que dificilmente teria outra saída.
Para estes últimos, qualquer veleidade de desafiar o Ocidente consitiui pura demagogia e miragem, e a questão central na Líbia seria, sim, a ameaça de extermínio que pairava sobre a população, tendo a crise começado com os primeiros tiros de Kadafi no seu próprio pé sem os quais não haveria NATO.
Há também quem condene a imprensa no geral por estereotipar a exclusividade da responsabilidade da NATO e do Ocidente pela operação militar na líbia, quando estes agiram como mandatários das Nações Unidas, como organização universal, para além do papel crucial desempenhado por alguns países árabes e pela própria Liga Árabe (LA) que são entes externos ao bloco transatlântico.
Os advogados desta visão destacam ainda que a LA foi uma das primeiras instâncias internacionais a suspender a Líbia em protesto à “postura criminosa” de Kadafi contra o seu povo, e que a última e mais vibrante derrota do grupo de países africanos opostos à ofensiva militar na Líbia ocorreu longe da NATO e do Ocidente mas em plena Assembleia Geral das Nações Unidas, quando tentaram desesperadamente, e em vão, impedir o reconhecimento internacional das novas autoridades líbias.
De qualquer modo, parece haver mais semelhanças que dissemelhanças entre o caso Kadafi e o de muitos pares seus, já caídos ou ainda “sobreviventes”. Para todos eles, os seus olhos nunca viram a tal de ditadura de que os seus povos se dizem vítimas, utilizando argumentos vários para se justificar.
Para já, onde há milhões de habitantes, ninguém devia, em sã consciência, achar-se no único cidadão apto a liderar, como muitos já insinuaram, a tal ponto que a sua retirada ou substituição mergulhe automática ou inevitavelmente os seus países na instabilidade geral, no caos ou na secessão.
Em vez de um diálogo preventivo para mudar a mentalidade governativa, desvaloriza-se os primeiros sinais de descontentamento popular, alegando “instigações” externas, com o povo desqualificado, inabilitado ou mesmo interditado de pensar por si e distinguir, sozinho, o bem do mal.
Quando tudo amadurece, este mesmo povo em nome de quem se reclama a legitimidade para governar ou a quem se implora o voto para obter tal legitimidade passa a “merecer” apodos tão rudes como reacionários, impatrióticos, ingratos, vende-pátrias, traidores, invejosos, drogados e afins, antes de se soltar canhões e carros blindados a serem disparados pelo povo contra o povo.
Cenários como estes são normalmente precedidos de outros sofismas como o da falta de identidade entre as realidades de um e de outro país que, neste caso, seria bastante para infirmar qualquer possibilidade de contágio, mesmo se sabendo que se vive hoje num mundo chamado “aldeia global”.
Por isso, é cada vez mais fácil compreender como toda a sequência de exemplos recentes tão nítidos como a Tunísia, o Egito, a Côte d’Ivoire e agora a própria Líbia de nada serviu para as demais lideranças políticas de vulnerabilidade indisfarçável, entre as quais se destacam hoje as de Bashar al-Assad na Síria e Ali Abdallah Saleh, no Iémen, ao lado de várias outras que preferem a incubação.
As chamadas potências ocidentais que, em tempo de “paz”, são os aliados privilegiados a quem se confia até a guarda das fortunas pessoais e a gestão dos negócios nacionais mais rentáveis, incluindo contratos petrolíferos e de armas, passam, de repente, a bodes expiatórios e laboratórios de ensaios conspiratórios destinados a espoliar as riquezas da casa e instalar o neocolonialismo.
Mesmo a própria organização de todos, a ONU (Organização das Nações Unidas), que às vezes é prolixamente elogiada, juntamente com o Ocidente, quando há uma decisão pró-governamental, que se torna numa música do discurso político oficial como “vitória diplomática”, passa por cúmplice dos Imperialistas ou por um organismo ao seu serviço, quando decide desafiar o poder instituído.
E a mobilização de multidões em comícios públicos para mostrar ao mundo a força e a amplidão do apoio de que se goza entre as massas, mesmo às vezes recorrendo à coação e a outros métodos refinados de corrupção para forçar a aderência popular, transforma-se em denominador comum.
Neste particular, Kadafi ainda foi a tempo de perceber que nem sempre a superlotação dos comícios é sinónimo de apoio popular. Porém, não pôde explicar aos Líbios como conciliaria os seus alardeios anti-imperialismo com as flagrantes revelações da sua estreita colaboração com a Espionagem ocidental documentalmente confirmada pelos arquivos secretos abandonados em Tripoli.
Em sua defesa contra a pressão popular para a sua retirada, ele dizia-se despido de quaisquer cargos públicos dos quais pudesse demitir-se, tais como os de Presidente da República ou chefe do governo, pois ele era apenas um simbólico “líder da Revolução” e todo o poder era exercido pelo povo!
Na mesma senda, os seus pares assumidamente detentores de tais títulos oficiais sempre se escudaram no facto de organizarem processos eleitorais legitimados por órgãos constitucionais legalmente instituídos, mas por eles controlados, como o seu argumento de ouro.
É que, num e noutro caso, fica a impressão de que o exercício do poder pelo povo é algo meramente formal, bastando estar consagrado num instrumento oficial qualquer, ou então algo que se esgota apenas na participação em eleições “democráticas”, que, independemente do rumo dado pelos governantes ao mandato daí resultante, informa um cenário de ausência de ditadura.
Ditadura é definida por alguns especialistas como designativa de regimes antidemocráticos ou governos com participação popular inexistente ou inexpressiva e poder concentrado numa única pessoa, em vez da sua dispersão por órgãos distintos tais como o legislativo, o executivo e o judicial.
Para estes especialistas, por exemplo, a marca deste tipo de regimes é a ilegalidade, entendida como “a violação das leis e regras pré-estipuladas” ou a revogação de legislação vigente seguida da sua substituição por “regras estabelecidas conforme as conveniências da perpetuação do poder”.
O controlo social e político despótico pelo uso da força e da fraude, bem como a intimidação, o terror e o desrespeito pelas liberdades civis estão, segundo eles, entre os métodos utilizados para conquistar ou manter o poder em tais regimes, tornando a sua sucessão “sempre difícil”.
Traços do género são, pois, identificáveis nas preocupações expressas num comovente discurso feito na sede da ONU, em Nova Iorque, a 25 de fevereiro de 2011, pelo então representante permanente da Líbia junto desta organização universal, Abdelrhamane Shalgham.
Shalgham quase fez lagrimar a audiência de tanto emotiva a sua alocução em que comparou Muamar Kadafi a personalidades tão tristemente célebres como Hitler, Pol Pot e Mussolini, o que lhe valeu a inédita decisão em que o Conselho de Segurança (CS) da ONU, pela primeira vez na sua história, aprovou por unanimidade uma resolução (1970) contra o regime de um Estado-membro.
A sua intervenção foi marcada pela citação de algumas das frases mais sádicas de Pol Pot e Hitler para ilustrar a “monstruosidade” que Kadafi passou a representar para o seu povo, e suplicar que os membros daquele órgão fizessem alguma coisa “para salvar a Líbia (...) e travar o massacre de inocentes”, em referência à eclosão da guerra civil no seu país.
Dizia Shalgham, numa dessas citações, que, quando Hitler convoca um dos seus generais para lhe anunciar a sua decisão de invadir a então União Soviética, e este lhe informa que a operação iria custar dois milhões de vidas humanas, a resposta de Hitler foi perguntar ao seu interlocutor “que importância tem morrerem dois milhões de Alemães se é para defender a glória do Führer (Guia) ?”
Shalgham, um antigo ministro dos Negócios Estrangeiros de Kadafi, assimilou aquelas palavras de Hitler ao conteúdo das mensagens que Muamar Kadafi dirigiu ao seu povo, nos primeiros dias da revolução líbia, com recados do tipo “ou continuo a governar-vos ou vos mato e extermino todos”, ou ainda, e já mais paternalista, “o meu povo está pronto a morrer por mim porque me ama muito”.
A sua complexidade de um ser relativamente mais sanguinário, intolerante e liberticida em casa e associado a um passado terrorista e desestabilizador além-fronteiras, onde deixou centenas de famílias enlutadas, em contraste com a sua generosidade de distribuir caridades entre alguns famintos de África parece constituir, talvez, a face que mais distingue Kadafi dos seus colegas.
As similitudes são claramente predominantes. Elas vão desde a alergia a críticas à indisponibilidade de aconselhamento, passando pelo complexo de superioridade, que acaba por contaminar os seus próximos, descendo até aos escalões inferiores da pirâmide do poder, onde as qualidades mais “nobres” são a arrogância, o desprezo e o exibicionismo, isto é, tudo menos humildade.
Segundo alguns dos seus antigos colaboradores, Muamar Kadafi “não ouvia conselhos de ninguém, até mesmo dos seus amigos africanos”, incluindo-se neste grupo de amizades “aqueles chefes de Estado que sempre pensaram ser amigos dele mas que eram todos detestados por ele”.
Ele nunca escondeu o seu desprezo pelos seus homólogos árabes e africanos muitos dos quais via como traidores e ingratos, sobretudo os de países que ele dizia ter muito ajudado a libertar-se do jugo colonial mas que se recusaram depois a apoiar o seu projeto de Estados Unidos de África.
Quanto à indisponibilidade de aconselhamento, ela pode ser voluntária ou involuntária, mas terá produzido vários tipos distintos ou híbridos de liderança política, que se podem manter invariáveis ou variáveis consoante as circunstâncias, mas cujo ponto de convergência é a substituição do poder institucionalizado pelo poder personalizado, ou seja, do poder das leis pelo poder dos homens.
Ela traduz-se na ausência de conselheiros de facto no círculo institucional e oficial em torno do chefe, porque mesmo existindo, fisica e formalmente, eles não produzem, absolutamente, conselho algum.
O aconselhamento está sempre indisponível, porque, num modelo de liderança do tipo kadafista, por exemplo, onde o chefe é hostil às opiniões dos seus colaboradores, a visão dele dos factos é a melhor e a única válida, e as pessoas que o rodeiam, por mais fiéis que se revelem, são permanentemente suspeitos e vistos como potenciais opositores, preferindo daí confiar mais no parentesco.
Surge assim a subalternização da equipa governamental formal pelo esvaziamento dos seus poderes, que são transferidos para a família do chefe como a detentora de facto da legitimidade de exercício do poder de decisão, limitando aquela à sua legitimidade de título o que se refletirá na irrelevância ou nulidade dos seus pronunciamentos ou atos, quando não autorizados pela “nobreza”.
Num segundo modelo, o principal traço caraterístico é a existência formal de uma constelação de conselheiros que, quase sempre, gozam da inteira confiança do chefe até lhes atribuir poderes especiais que fazem deles a verdadeira equipa executiva de facto sem a qual o país não funciona.
Revelam-se naturalmente bem informados e, nalguns casos, muito sofisticados intelectualmente. Mas, nos momentos mais críticos e decisivos, eles omitem-se. Nunca dizem a verdade ao chefe ou por medo de o contrariar ou por admitir a sua impreparação para consequências ou sacrifícios “desagradáveis” decorrentes da eventual tomada da decisão certa e por eles aconselhada.
Preferem que o chefe avance a sua própria ideia-proposta para depois se encarregarem de arrumar os argumentos técnicos visando fundamentar e justificar, diante da sociedade, a sua pertinência e conformidade à lei, ainda que tal conduza a leis mortas, ou mesmo quebrando determinados tabus pré-existentes que, a partir dessa altura, deixam de o ser porque já abordados pelo chefe.
O mínimo que podem fazer em termos de conselho é desaconselhar o chefe de responder a “provocações”, limitando os seus pronunciamentos públicos e a sua exposição tal como eles, que são normalmente raros “no ecrã” e também raramente falam publicamente sobre questões delicadas do momento, para salvaguardar a sua credibilidade e evitar o ridículo de defender o indefensável.
São ambientes de trabalho em que também não faltam intrigas e em que pedir demissão é uma afronta imperdoável que coloca o autor às portas do ostracismo, com a ajuda de alguns “infiltrados” dispostos a tudo fazer para o chefe perder confiança nos outros, normalmente os mais dotados.
O terceiro modelo corresponderá a um tipo de conselheiros desinformados e estagnados no tempo. Mais preocupados com a manutenção dos postos do que com a proteção do chefe que fingem defender, deixaram de ser credíveis perante a sociedade que os tem por uma grande desilusão.
São vítimas da sua desonestidade intelectual ou da cronicidade da sua mentalidade de guerra fria que colidem com a necessidade de adaptação aos novos tempos de mudança, que, para eles, significam mudar para pior, para a catástrofe, e que tem de ser evitada a todo o custo e por todos os meios.
Para estes, toda e qualquer sublevação social é vista e equacionada no prisma da defunta guerra fria, em que as potenciais forças da mudança são reacionárias e subversivas, sempre associadas à obra de forças ocultas, normalmente patrocindadas por potências estrangeiras, pelo que todo o seu esforço intelectual é consagrado à fabricação de “provas” deste subversionismo para mostrar trabalho.
Até comportamentos elementares e banais como as greves dos trabalhadores e outras reivindicações sociais normais passam a ter o mesmo tratamento e a mesma interpretação diversionista, criando na sociedade o pânico, o medo, a desconfiança generalizada e o excesso de zelo e de autocensura.
Promove-se uma oratória que relativiza o dever do Estado de respeitar a lei e os direitos fundamentais dos governados e escamoteia o direito destes de resistir e rebelar-se contra o esmagamento das suas garantias constitucionais, em arrepio da doutrina jurídica moderna.
No plano da política externa, eles estão muito propensos a conduzir o país progressivamente para o isolamento, porque as suas análises, enquanto os rostos mais visíveis e as vozes mais ouvidas internamente, procuram incutir no cidadão a ideia de um mundo e de uma comunidade internacional avessos ao país, por inveja, enquanto se vangloriam das posições do chefe como as mais visionárias.
Assim, quase sempre o chefe é empurrado para a ridicularização com aparições públicas menos recomendáveis, usando de discursos mais ou menos ocos e fora de contexto cuja impertinência é amplamente percetível a partir mesmo do mais comum dos cidadãos sem grande esforço literário.
Com esta postura, fomenta-se inconscientemente a contestação popular contra o chefe e a sua manutenção na desconfiança permanente em relação ao seu público, bem como a sua limitação intelectual que conforta o seu conservadorismo e pessimismo, fazendo-o acreditar piamente numa quase exclusiva lealdade de tais conselheiros, que são, no fundo, os seus verdadeiros “carrascos”.
Só muito tarde de mais, perceberá o chefe que o pior inimigo do poder é o próprio poder e nunca o povo. Que é o próprio poder que fica casmurro e insensível ao clamor das massas ou porque é por natureza casmurro ou porque assim ficou por maus conselhos ou por ausência de conselhos.
A experiência mostra que da longa lista de líderes até aqui derrubados de forma humilhante e trágica, mesmo os que tiveram uma oportunidade de evitar a humilhação não o fizeram. Preferiram a hecatombe, sem nenhuma preocupação pelas vidas humanas, até das suas próprias famílias, que, também, nunca souberam, aparentemente, dar bons conselhos no momento certo.
Será dar razão a Thomas Hobbes, com a sua profética constatação de há mais de 360 anos, no seu famoso “Leviathan”, quando elegeu como primeira inclinação geral humana “um desejo perpétuo, e sem descanso, de adquirir poder e mais poder, desejo esse que só cessa com a morte” tal como em Kadafi e outros?
Por Fred Cawanda (Panapress)
-0- PANA IZ 15nov2011