PANAPRESS
Agência Panafricana de Notícias
O crime da cumplicidade (I)
Dakar, Senegal (PANA) - Depois do que se viveu na Líbia, as imagens que diariamente percorrem o mundo, vindas da Síria de Bashar Al-Assad e do Iémen de Ali Abdullah Saleh, desde os primeiros meses de 2011, fazem recordar o “estado de natureza” a que alguns filósofos já aludiam há quase quatro séculos.
Ao mesmo tempo, a amplitude da carnificina e da barbárie que suplanta a irracionalidade animal, sobretudo na Síria, chega mesmo a ultrapassar a imaginação de tais filósofos, desde os primeiros teorizadores aos que consolidaram aquele conceito político que deu origem à atual noção de Estado.
Segundo eles, “estado de natureza” é como a vida primitiva ou das tribos selvagens, sem lei nem autoridade pública. É anarquia, com riscos de uma guerra permanente de todos contra todos, onde cada um é livre de usar o seu poder como bem quiser “para preservar a sua própria natureza, isto é, a sua própria vida”, e, consequentemente, fazer tudo que julgar “mais adequado para esse fim”.
Daí que o ideal seria estabelecer um “contrato social” através do qual essa forma primitiva evoluiria para uma outra politicamente organizada, ou “estado de sociedade”, sob a autoridade de um único ente soberano, o Estado, encarregue de impôr a ordem e garantir a paz e a segurança de todos, num pacto cuja violação acarretaria a “regressão” da comunidade ao anterior “estado de natureza”.
O mesmo seria também válido, diziam, para a sociedade internacional onde não existe “qualquer poder comum” sobre os Estados que os impeça de se guerrear ou dizimar o povo, valendo-se da sua independência (soberania) e movidos por “ciúmes contínuos e pela postura de gladiadores (...)”.
Não há, pois, melhor ilustração da pertinência desta visão que os genocídios, as guerras ou outras barbaridades que o mundo já conheceu até aqui e, nalguns casos, sobretudo os mais recentes, com a cumplicidade ou indiferença duma comunidade internacional de “ciúmes contínuos” que prevalecem sobre a dignidade da vida humana e sacrificam milhões de vidas para proteger um só homem.
Na Síria, por exemplo, até a Rússia e a China, os mais destacados protetores atuais do regime, começaram a dar sinais de “esgotamento”. Beijing avisou que a sua paciência com o líder sírio estava a chegar ao fim, enquanto Moscovo oferecia a Al-Assad a escolha entre “partir ou fazer reformas”.
Depois de muita vista grossa, a Rússia passou também a utilizar expressões como “repressão violenta de manifestantes” ou “derramamento de sangue” para se referir à situação reinante na Síria, embora continue a declarar “guerra” contra quaisquer “tentativas externas” para tirar Al-Assad do poder.
Mas quem parece agastado com a ausência dessas “tentativas externas” são precisamente os tais manifestantes sírios, de tanto esperar em vão, e na ansiedade, por um milagre para pôr fim a um massacre industrial vivido desde março de 2011 e sem nenhuma luz no fundo do túnel, oito meses depois.
Eles nunca esconderam a sensação de que a inércia de entes como a Organização das Nações Unidas (ONU) e o sono prolongado de outros como a Liga dos Estados Árabes (LEA) os fez propender para o legítimo sentimento de vítimas da política de “dois pesos duas medidas” nas “tentativas externas”.
Os seus slogans e cartazes falam por si. São maioritariamente mensagens apresentadas em inglês, num país onde, em tempos normais, o uso da língua de Shakespeare pelas massas é uma espécie de tabu ou “profanação” contra o árabe oficial, “único e sagrado”. Assim, este gesto dos manifestantes revela que o destinatário do seu recado é o mundo ocidental, o mesmo que a Rússia se diz determinada a combater para impedir qualquer intervenção sua contra Bashar Al-Assad.
“Qual é a vossa aposta? Estão à espera de quê? Querem esperar até que Al-Assad nos extermine?, lia-se da tradução do conteúdo de um dos cartazes exibidos pelos manifestantes, em inglês, em novembro de 2011. Não será esta também uma forma de rogar à Rússia e à China para deixarem de estar mais preocupadas com a sorte de um só homem e começar a olhar mais para o sofrimento do povo?
Há muito que estes manifestantes e outras pessoas no estrangeiro questionam por que há de ser que a comunidade internacional agiu em tempo útil, e organizadamente, para travar a espada do rei na Líbia, mas, praticamente nas mesmas circunstâncias, ela não é capaz de mover uma palha na Síria.
As respostas à esta inquietação variam, dependendo do ponto de partida. A diferença do peso económico e geostratégico de cada país na balança dos que mandam no mundo ou as alianças escuras entre pequenos e grandes, o equivalente aos tais “ciúmes contínuos”, fazem parte da lista.
Na verdade, as especulações poderão ser mil, mas jamais serão completas se não incluírem a ausência daquele “poder comum” e único, capaz de desencorajar e travar a “regressão ao estado de natureza”, como a principal raíz do problema hoje no mundo, não só na Síria como em quase todo o lado, incluindo no Iémen, no caso Palestina-Israel ou em quase todo o Médio Oriente e outros.
É possível que, para alguns, terão passado despercebidas as tentativas de certos membros da ONU de avançar com uma resolução punitiva contra o regime sírio, mas que foi bloqueada pelo duplo veto da Rússia e da China, cujo papel é ultimamente assimilado, por muitos, ao de “padrinhos cúmplices” das tiranias modernas que culminam sempre em holocaustos.
Foi uma obstrução que desorientou profundamente os proponentes da medida que, visivelmente furiosos, acusaram a aliança russo-chinesa de “preferir a venda de armas ao regime sírio” a esforços para enfrentar “um desafio moral urgente e uma ameaça crescente à paz regional”.
No entender da Rússia, a situação na Síria “não representa uma ameaça à paz e à segurança internacionais” e que uma punição do regime “pode encorajar os manifestantes a recorrer à violência e servir de pretexto para uma intervenção militar à moda líbia para derrubar o poder”.
Na mesma senda, a China retomou os mesmos argumentos utilizados no caso líbio para insistir na necessidade do “respeito total da soberania, da independência e da integridade territorial da Síria”.
A permanente predisposição destes dois gigantes vermelhos para vetar toda e qualquer decisão hostil a Al-Assad tornou-se de tal forma inexplicável para alguns que, para a “contornar”, os demais membros do CS foram obrigados a “descer” até à
Assembleia Geral da ONU à procura de um canal para fazer passar “pelo menos uma condenação mundial contra as atrocidades do regime sírio”.
Fizeram-no convencidos de que uma resolução adotada pela Assembleia Geral da ONU reflete efetivamente a “opinião mundial”, embora não seja juridicamente vinculativa para os seus Estados-membros, tal como o seria se partisse duma decisão do Conselho de Segurança.
Indiretamente, foi uma forma de transmitir à martirizada população síria a mensagem de que a ONU, enquanto organização, sempre esteve solidária com a sua causa e só não pode agir ou ir além do que fez até aqui porque é impedida por apenas dois dos seus 193 membros, a Rússia e a China.
Arrependidos de ter deixado “escapar” a Resolução 1973 do CS que autorizou o uso da força na Líbia, a Rússia e a China juraram jamais repetir “o mesmo erro” em relação à Síria, com o argumento de que ambos são opostos ao uso da força nas relações internacionais e contra a população civil.
Dizem-se advogados do diálogo e da resolução pacífica dos conflitos bem como do “fim imediato e incondicional de todos os ataques contra civis e outras violações do Direito Internacional Humanitário e dos direitos humanos”.
Até aí, nada de anormal. Para além de convincente e desejável, o argumento reflete o espírito da Carta das Nações Unidas, em particular, e do Direito Internacional em geral, não fosse traído por alguns atos dos seus autores praticados antes ou depois do seu pronunciamento.
Estupefação geral é o que ressalta da postura dos dois países ao longo de todo este processo. Talvez por lapso, o representante russo no Conselho de Segurança, Vitaly Ivanovich Churkin, falou em “tragédia em Benghazi” para ilustrar a perigosidade de uma intervenção militar estrangeira que, segundo ele, justifica o veto do seu país no caso sírio.
Aparentemente, o diplomata russo esqueceu-se de que a “tragédia em Benghazi”, sede da rebelião contra Muamar Kadafi, foi muito anterior à intervenção militar mandatada pela ONU na Líbia, pelo que deveria ser encarada antes como uma causa do que uma consequência desta operação.
O seu primeiro-ministro Vladimir Putin já tinha comparado a mesma operação às Cruzadas da Idade Média, dando assim um apoio moral de peso a Kadafi, que usava do mesmo discurso como arma para instigar o anticristianismo e arregimentar simpatias do mundo árabe e muçulmano à sua causa.
A reprovação das declarações de Putin veio, logo a seguir, do próprio Presidente russo, Dmitry Medvedev, numa reprimenda pública em que as qualificou de “inaceitáveis” porque suscetíveis de “conduzir ao choque de civilizações e agravar ainda mais o que está a acontecer”.
Sobre a Síria, a Rússia negou no início que houvesse “ataques contra civis”, dizendo que as imagens televisivas que mostravam a repressão violenta de manifestantes civis pelas forças da ordem, nas ruas da capital, Damasco, e outras cidades do país, eram “pura invenção ou montagem”.
A sua voz começou a ser mais ouvida quando, numa altura em que a ONU falava em quase três mil vítimas mortais desta onda de violência, condenou com muita firmeza o ataque de soldados dissidentes, descritos como “terroristas e extremistas”, contra a sede dos Serviços Secretos do regime cujas imagens vieram a público através dos mesmos canais televisivos que antes “faziam montagem”.
Também não passou despercebida a reviravolta na posição sino-russa, quando os dois países se decidiram apressadamente pelo reconhecimento das novas autoridades líbias, depois de se confirmar que o regime de Kadafi já não tinha chances de sobreviver, e numa altura em que começaram a surgir denúncias de possíveis fornecimentos de armas a este a partir da China.
Negando tais alegações de contratos de venda de armas, e atribuindo estes a hipotéticos empresários privados que o teriam feito “sem o conhecimento das autoridades oficiais”, viu-se, à semelhança da Rússia, uma China mais determinada e preocupada em fazer respeitar os seus interesses económicos e comerciais na Líbia por parte do novo poder saído duma rebelião que lhe parecia hostil.
Por isso, nada surpreenderia se, na eventualidade de ser imaginável para a Síria um quadro similar aos desenvolvimentos que na Líbia ditaram o fim irrevogável do reinado kadafista, Beijing e Moscovo reeditassem a mesma postura de recuos de última hora, desvendando assim a sua “hidden agenda”.
Mas, até lá, eles e seus aliados terão deixado gravada na memória da população síria, em particular, a impressão de que o conceito de “ataque contra civis” varia em função de quem ataca, assim como o de “violação dos direitos humanos” em função de quem viola ou da pessoa violada. Ou seja, se o atacante é (ainda) nosso amigo ou aliado, então não há ataque contra civis. Só o há se não gostamos (mais) da pessoa que ataca ou quando este ataque é perpetrado contra o nosso protegido.
Aliás, este “novo conceito” também esteve presente no conflito líbio. Quase todos os países críticos à operação militar coligada, com a China e a Rússia à cabeça, condenavam publicamente a morte de “civis inocentes” só em referência às chamadas “vítimas colaterais” dos ataques aéreos da NATO.
Fez-se transparecer que a Líbia estava a gozar de paz plena sem nenhum perigo, vestígio ou casos de tragédia ou ataque contra civis inocentes nem “violação dos direitos humanos” não fossem os bombardeamentos da NATO (Organização do Tratado do Atlântico Norte)!
Era como se as balas disparadas pelas forças de Kadafi, usando até carros blindados e outras armas pesadas, caíssem todas no vazio, logo, sem vítimas civis e inocentes! Como se as denúncias de violação sexual coletiva da célebre Eman El Obeidi e de várias outras Líbias anónimas, o massacre do cerco à heróica cidade de Misrata e os milhares de cadáveres encontrados em valas comuns, nas prisões, nos hospitais e noutros recantos de Tripoli e fora dela fossem tudo “montagem”!
Claramente, as condições estão criadas para que, salvo milagre de última hora, a situação na Síria continue o seu caminho até ao fim sem nenhuma “interferência” decisiva da comunidade internacional que já revelou as suas limitações, com um Conselho de Segurança “atado” aos caprichos das nações detentoras do poder de veto, quando devia ser o tal “gendarme mundial”.
O Conselho é a única instância do sistema internacional com poderes para tomar decisões obrigatórias para todos os Estados-membros da ONU, no quadro do seu mandato original de manutenção da paz e da segurança mundiais. Mas um único veto permite obstruir qualquer decisão (não processual) do órgão, mesmo obtendo o mínimo dos nove votos favoráveis em 15 possíveis.
Por outras palavras, uma resolução do Conselho é aprovada se tiver uma maioria mínima de nove votos favoráveis dos seus atuais 15 membros (cinco permanentes e 10 não permanentes). Mas bastará um único voto “contra” de um dos cinco membros permanentes para “chumbar” a decisão, ainda que todos os restantes 14 tenham votado a favor (Artigo 27 da Carta das Nações Unidas).
Diz-se então que a resolução foi vetada, porque um dos membros permanentes, mas apenas um, usou do seu veto negativamente, ao passo que uma abstenção deste mesmo membro não significaria veto mas aprovação do documento, como aconteceu com a Resolução 1973 contra a Líbia de Kadafi, em que, para além dos nove votos exigíveis, a Rússia e a China se abstiveram.
Este é o principal “handicap” da organização mãe, a ONU, cuja missão primeira é evitar a reedição de um novo conflito à escala global semelhante à II Guerra Mundial, realizando a paz universal pela prevenção e resolução de conflitos e pela promoção do diálogo e da cooperação internacional.
Este ideal vem expresso logo a partir do prêambulo da sua Carta Magna, que proclama a determinação dos “povos das Nações Unidas em preservar as gerações vindouras do flagelo da guerra, que por duas vezes (...) trouxe consternação indizível à humanidade, e reafirmar a fé nos direitos fundamentais do homem, na dignidade e no valor do ser humano (...)”.
O prêambulo consagra ainda “a fé na igualdade de direitos dos homens e das mulheres, assim como das nações, grandes e pequenas”, bem como o compromisso de “unir as nossas forças para a manutenção da paz e da segurança internacionais e garantir, pela aceitação de princípios e pela instituição de métodos, que não haja o uso da força armada salvo no interesse comum”.
Mas como atingir tais objetivos, sem efetivar a tal transferência do monopólio da força legítima de cada Estado para o tal “gendarme mundial”? E como chegar a este “poder comum” com um Conselho de Segurança moribundo mas praticamente intocável na sua configuração?
A ONU nasceu num contexto muito diferente do atual e, desde a sua criação, em 1945, ela não acompanhou as alterações conjunturais verificadas na arena internacional, mantendo quase a mesma configuração de há 66 anos, quando tinha apenas 51 membros contra os atuais 193.
O seu principal órgão de decisão conserva uma composição ditatorial dominada pelos mesmos cinco países vencedores da II Guerra Mundial (China, Estados Unidos, França, Reino Unido e Rússia) que o controlam desde 1946. São os chamados membros permanentes e titulares do poder de veto, ou de obstrução, um privilégio que obtiveram como recompensa pela sua vitória naquele conflito.
Mesmo o fim da Guerra Fria, desde 1989, não produziu nenhum efeito palpável a esse nível. Todas as iniciativas tentadas até aqui para mudar o quadro e criar um maior equilíbrio no poder de decisão da organização redundaram em fracasso, por falta de unidade entre a maioria dos Estados-membros mais virados para os interesses individuais dos países que o interesse geral.
A isso acresce-se a dificuldade máxima ligada à rigidez da Carta das Nações Unidas cuja revisão depende dos interesses dos cinco detentores do poder de veto. Segundo o seu Artigo 108, tal alteração só é válida se ratificada por um terço dos membros da Assembleia Geral, “incluindo todos os membros permanentes do Conselho de Segurança”.
A ser assim, a ONU, enquanto expressão máxima da comunidade internacional, está condenada ao eterno dilema de ser alternadamente vítima e/ou promotora da injustiça no mundo.
Ela será sempre condenada pela população mundial por fazer e/ou por não fazer, tudo por causa desse absolutismo dos donos do veto, que pode servir até para proteger, encorajar ou manter impunes autores de crimes odiosos contra a humanidade numa postura de autêntica cumplicidade.
Por Fred Cawanda (Panapress)
-0- PANA IZ 21nov2011
Ao mesmo tempo, a amplitude da carnificina e da barbárie que suplanta a irracionalidade animal, sobretudo na Síria, chega mesmo a ultrapassar a imaginação de tais filósofos, desde os primeiros teorizadores aos que consolidaram aquele conceito político que deu origem à atual noção de Estado.
Segundo eles, “estado de natureza” é como a vida primitiva ou das tribos selvagens, sem lei nem autoridade pública. É anarquia, com riscos de uma guerra permanente de todos contra todos, onde cada um é livre de usar o seu poder como bem quiser “para preservar a sua própria natureza, isto é, a sua própria vida”, e, consequentemente, fazer tudo que julgar “mais adequado para esse fim”.
Daí que o ideal seria estabelecer um “contrato social” através do qual essa forma primitiva evoluiria para uma outra politicamente organizada, ou “estado de sociedade”, sob a autoridade de um único ente soberano, o Estado, encarregue de impôr a ordem e garantir a paz e a segurança de todos, num pacto cuja violação acarretaria a “regressão” da comunidade ao anterior “estado de natureza”.
O mesmo seria também válido, diziam, para a sociedade internacional onde não existe “qualquer poder comum” sobre os Estados que os impeça de se guerrear ou dizimar o povo, valendo-se da sua independência (soberania) e movidos por “ciúmes contínuos e pela postura de gladiadores (...)”.
Não há, pois, melhor ilustração da pertinência desta visão que os genocídios, as guerras ou outras barbaridades que o mundo já conheceu até aqui e, nalguns casos, sobretudo os mais recentes, com a cumplicidade ou indiferença duma comunidade internacional de “ciúmes contínuos” que prevalecem sobre a dignidade da vida humana e sacrificam milhões de vidas para proteger um só homem.
Na Síria, por exemplo, até a Rússia e a China, os mais destacados protetores atuais do regime, começaram a dar sinais de “esgotamento”. Beijing avisou que a sua paciência com o líder sírio estava a chegar ao fim, enquanto Moscovo oferecia a Al-Assad a escolha entre “partir ou fazer reformas”.
Depois de muita vista grossa, a Rússia passou também a utilizar expressões como “repressão violenta de manifestantes” ou “derramamento de sangue” para se referir à situação reinante na Síria, embora continue a declarar “guerra” contra quaisquer “tentativas externas” para tirar Al-Assad do poder.
Mas quem parece agastado com a ausência dessas “tentativas externas” são precisamente os tais manifestantes sírios, de tanto esperar em vão, e na ansiedade, por um milagre para pôr fim a um massacre industrial vivido desde março de 2011 e sem nenhuma luz no fundo do túnel, oito meses depois.
Eles nunca esconderam a sensação de que a inércia de entes como a Organização das Nações Unidas (ONU) e o sono prolongado de outros como a Liga dos Estados Árabes (LEA) os fez propender para o legítimo sentimento de vítimas da política de “dois pesos duas medidas” nas “tentativas externas”.
Os seus slogans e cartazes falam por si. São maioritariamente mensagens apresentadas em inglês, num país onde, em tempos normais, o uso da língua de Shakespeare pelas massas é uma espécie de tabu ou “profanação” contra o árabe oficial, “único e sagrado”. Assim, este gesto dos manifestantes revela que o destinatário do seu recado é o mundo ocidental, o mesmo que a Rússia se diz determinada a combater para impedir qualquer intervenção sua contra Bashar Al-Assad.
“Qual é a vossa aposta? Estão à espera de quê? Querem esperar até que Al-Assad nos extermine?, lia-se da tradução do conteúdo de um dos cartazes exibidos pelos manifestantes, em inglês, em novembro de 2011. Não será esta também uma forma de rogar à Rússia e à China para deixarem de estar mais preocupadas com a sorte de um só homem e começar a olhar mais para o sofrimento do povo?
Há muito que estes manifestantes e outras pessoas no estrangeiro questionam por que há de ser que a comunidade internacional agiu em tempo útil, e organizadamente, para travar a espada do rei na Líbia, mas, praticamente nas mesmas circunstâncias, ela não é capaz de mover uma palha na Síria.
As respostas à esta inquietação variam, dependendo do ponto de partida. A diferença do peso económico e geostratégico de cada país na balança dos que mandam no mundo ou as alianças escuras entre pequenos e grandes, o equivalente aos tais “ciúmes contínuos”, fazem parte da lista.
Na verdade, as especulações poderão ser mil, mas jamais serão completas se não incluírem a ausência daquele “poder comum” e único, capaz de desencorajar e travar a “regressão ao estado de natureza”, como a principal raíz do problema hoje no mundo, não só na Síria como em quase todo o lado, incluindo no Iémen, no caso Palestina-Israel ou em quase todo o Médio Oriente e outros.
É possível que, para alguns, terão passado despercebidas as tentativas de certos membros da ONU de avançar com uma resolução punitiva contra o regime sírio, mas que foi bloqueada pelo duplo veto da Rússia e da China, cujo papel é ultimamente assimilado, por muitos, ao de “padrinhos cúmplices” das tiranias modernas que culminam sempre em holocaustos.
Foi uma obstrução que desorientou profundamente os proponentes da medida que, visivelmente furiosos, acusaram a aliança russo-chinesa de “preferir a venda de armas ao regime sírio” a esforços para enfrentar “um desafio moral urgente e uma ameaça crescente à paz regional”.
No entender da Rússia, a situação na Síria “não representa uma ameaça à paz e à segurança internacionais” e que uma punição do regime “pode encorajar os manifestantes a recorrer à violência e servir de pretexto para uma intervenção militar à moda líbia para derrubar o poder”.
Na mesma senda, a China retomou os mesmos argumentos utilizados no caso líbio para insistir na necessidade do “respeito total da soberania, da independência e da integridade territorial da Síria”.
A permanente predisposição destes dois gigantes vermelhos para vetar toda e qualquer decisão hostil a Al-Assad tornou-se de tal forma inexplicável para alguns que, para a “contornar”, os demais membros do CS foram obrigados a “descer” até à
Assembleia Geral da ONU à procura de um canal para fazer passar “pelo menos uma condenação mundial contra as atrocidades do regime sírio”.
Fizeram-no convencidos de que uma resolução adotada pela Assembleia Geral da ONU reflete efetivamente a “opinião mundial”, embora não seja juridicamente vinculativa para os seus Estados-membros, tal como o seria se partisse duma decisão do Conselho de Segurança.
Indiretamente, foi uma forma de transmitir à martirizada população síria a mensagem de que a ONU, enquanto organização, sempre esteve solidária com a sua causa e só não pode agir ou ir além do que fez até aqui porque é impedida por apenas dois dos seus 193 membros, a Rússia e a China.
Arrependidos de ter deixado “escapar” a Resolução 1973 do CS que autorizou o uso da força na Líbia, a Rússia e a China juraram jamais repetir “o mesmo erro” em relação à Síria, com o argumento de que ambos são opostos ao uso da força nas relações internacionais e contra a população civil.
Dizem-se advogados do diálogo e da resolução pacífica dos conflitos bem como do “fim imediato e incondicional de todos os ataques contra civis e outras violações do Direito Internacional Humanitário e dos direitos humanos”.
Até aí, nada de anormal. Para além de convincente e desejável, o argumento reflete o espírito da Carta das Nações Unidas, em particular, e do Direito Internacional em geral, não fosse traído por alguns atos dos seus autores praticados antes ou depois do seu pronunciamento.
Estupefação geral é o que ressalta da postura dos dois países ao longo de todo este processo. Talvez por lapso, o representante russo no Conselho de Segurança, Vitaly Ivanovich Churkin, falou em “tragédia em Benghazi” para ilustrar a perigosidade de uma intervenção militar estrangeira que, segundo ele, justifica o veto do seu país no caso sírio.
Aparentemente, o diplomata russo esqueceu-se de que a “tragédia em Benghazi”, sede da rebelião contra Muamar Kadafi, foi muito anterior à intervenção militar mandatada pela ONU na Líbia, pelo que deveria ser encarada antes como uma causa do que uma consequência desta operação.
O seu primeiro-ministro Vladimir Putin já tinha comparado a mesma operação às Cruzadas da Idade Média, dando assim um apoio moral de peso a Kadafi, que usava do mesmo discurso como arma para instigar o anticristianismo e arregimentar simpatias do mundo árabe e muçulmano à sua causa.
A reprovação das declarações de Putin veio, logo a seguir, do próprio Presidente russo, Dmitry Medvedev, numa reprimenda pública em que as qualificou de “inaceitáveis” porque suscetíveis de “conduzir ao choque de civilizações e agravar ainda mais o que está a acontecer”.
Sobre a Síria, a Rússia negou no início que houvesse “ataques contra civis”, dizendo que as imagens televisivas que mostravam a repressão violenta de manifestantes civis pelas forças da ordem, nas ruas da capital, Damasco, e outras cidades do país, eram “pura invenção ou montagem”.
A sua voz começou a ser mais ouvida quando, numa altura em que a ONU falava em quase três mil vítimas mortais desta onda de violência, condenou com muita firmeza o ataque de soldados dissidentes, descritos como “terroristas e extremistas”, contra a sede dos Serviços Secretos do regime cujas imagens vieram a público através dos mesmos canais televisivos que antes “faziam montagem”.
Também não passou despercebida a reviravolta na posição sino-russa, quando os dois países se decidiram apressadamente pelo reconhecimento das novas autoridades líbias, depois de se confirmar que o regime de Kadafi já não tinha chances de sobreviver, e numa altura em que começaram a surgir denúncias de possíveis fornecimentos de armas a este a partir da China.
Negando tais alegações de contratos de venda de armas, e atribuindo estes a hipotéticos empresários privados que o teriam feito “sem o conhecimento das autoridades oficiais”, viu-se, à semelhança da Rússia, uma China mais determinada e preocupada em fazer respeitar os seus interesses económicos e comerciais na Líbia por parte do novo poder saído duma rebelião que lhe parecia hostil.
Por isso, nada surpreenderia se, na eventualidade de ser imaginável para a Síria um quadro similar aos desenvolvimentos que na Líbia ditaram o fim irrevogável do reinado kadafista, Beijing e Moscovo reeditassem a mesma postura de recuos de última hora, desvendando assim a sua “hidden agenda”.
Mas, até lá, eles e seus aliados terão deixado gravada na memória da população síria, em particular, a impressão de que o conceito de “ataque contra civis” varia em função de quem ataca, assim como o de “violação dos direitos humanos” em função de quem viola ou da pessoa violada. Ou seja, se o atacante é (ainda) nosso amigo ou aliado, então não há ataque contra civis. Só o há se não gostamos (mais) da pessoa que ataca ou quando este ataque é perpetrado contra o nosso protegido.
Aliás, este “novo conceito” também esteve presente no conflito líbio. Quase todos os países críticos à operação militar coligada, com a China e a Rússia à cabeça, condenavam publicamente a morte de “civis inocentes” só em referência às chamadas “vítimas colaterais” dos ataques aéreos da NATO.
Fez-se transparecer que a Líbia estava a gozar de paz plena sem nenhum perigo, vestígio ou casos de tragédia ou ataque contra civis inocentes nem “violação dos direitos humanos” não fossem os bombardeamentos da NATO (Organização do Tratado do Atlântico Norte)!
Era como se as balas disparadas pelas forças de Kadafi, usando até carros blindados e outras armas pesadas, caíssem todas no vazio, logo, sem vítimas civis e inocentes! Como se as denúncias de violação sexual coletiva da célebre Eman El Obeidi e de várias outras Líbias anónimas, o massacre do cerco à heróica cidade de Misrata e os milhares de cadáveres encontrados em valas comuns, nas prisões, nos hospitais e noutros recantos de Tripoli e fora dela fossem tudo “montagem”!
Claramente, as condições estão criadas para que, salvo milagre de última hora, a situação na Síria continue o seu caminho até ao fim sem nenhuma “interferência” decisiva da comunidade internacional que já revelou as suas limitações, com um Conselho de Segurança “atado” aos caprichos das nações detentoras do poder de veto, quando devia ser o tal “gendarme mundial”.
O Conselho é a única instância do sistema internacional com poderes para tomar decisões obrigatórias para todos os Estados-membros da ONU, no quadro do seu mandato original de manutenção da paz e da segurança mundiais. Mas um único veto permite obstruir qualquer decisão (não processual) do órgão, mesmo obtendo o mínimo dos nove votos favoráveis em 15 possíveis.
Por outras palavras, uma resolução do Conselho é aprovada se tiver uma maioria mínima de nove votos favoráveis dos seus atuais 15 membros (cinco permanentes e 10 não permanentes). Mas bastará um único voto “contra” de um dos cinco membros permanentes para “chumbar” a decisão, ainda que todos os restantes 14 tenham votado a favor (Artigo 27 da Carta das Nações Unidas).
Diz-se então que a resolução foi vetada, porque um dos membros permanentes, mas apenas um, usou do seu veto negativamente, ao passo que uma abstenção deste mesmo membro não significaria veto mas aprovação do documento, como aconteceu com a Resolução 1973 contra a Líbia de Kadafi, em que, para além dos nove votos exigíveis, a Rússia e a China se abstiveram.
Este é o principal “handicap” da organização mãe, a ONU, cuja missão primeira é evitar a reedição de um novo conflito à escala global semelhante à II Guerra Mundial, realizando a paz universal pela prevenção e resolução de conflitos e pela promoção do diálogo e da cooperação internacional.
Este ideal vem expresso logo a partir do prêambulo da sua Carta Magna, que proclama a determinação dos “povos das Nações Unidas em preservar as gerações vindouras do flagelo da guerra, que por duas vezes (...) trouxe consternação indizível à humanidade, e reafirmar a fé nos direitos fundamentais do homem, na dignidade e no valor do ser humano (...)”.
O prêambulo consagra ainda “a fé na igualdade de direitos dos homens e das mulheres, assim como das nações, grandes e pequenas”, bem como o compromisso de “unir as nossas forças para a manutenção da paz e da segurança internacionais e garantir, pela aceitação de princípios e pela instituição de métodos, que não haja o uso da força armada salvo no interesse comum”.
Mas como atingir tais objetivos, sem efetivar a tal transferência do monopólio da força legítima de cada Estado para o tal “gendarme mundial”? E como chegar a este “poder comum” com um Conselho de Segurança moribundo mas praticamente intocável na sua configuração?
A ONU nasceu num contexto muito diferente do atual e, desde a sua criação, em 1945, ela não acompanhou as alterações conjunturais verificadas na arena internacional, mantendo quase a mesma configuração de há 66 anos, quando tinha apenas 51 membros contra os atuais 193.
O seu principal órgão de decisão conserva uma composição ditatorial dominada pelos mesmos cinco países vencedores da II Guerra Mundial (China, Estados Unidos, França, Reino Unido e Rússia) que o controlam desde 1946. São os chamados membros permanentes e titulares do poder de veto, ou de obstrução, um privilégio que obtiveram como recompensa pela sua vitória naquele conflito.
Mesmo o fim da Guerra Fria, desde 1989, não produziu nenhum efeito palpável a esse nível. Todas as iniciativas tentadas até aqui para mudar o quadro e criar um maior equilíbrio no poder de decisão da organização redundaram em fracasso, por falta de unidade entre a maioria dos Estados-membros mais virados para os interesses individuais dos países que o interesse geral.
A isso acresce-se a dificuldade máxima ligada à rigidez da Carta das Nações Unidas cuja revisão depende dos interesses dos cinco detentores do poder de veto. Segundo o seu Artigo 108, tal alteração só é válida se ratificada por um terço dos membros da Assembleia Geral, “incluindo todos os membros permanentes do Conselho de Segurança”.
A ser assim, a ONU, enquanto expressão máxima da comunidade internacional, está condenada ao eterno dilema de ser alternadamente vítima e/ou promotora da injustiça no mundo.
Ela será sempre condenada pela população mundial por fazer e/ou por não fazer, tudo por causa desse absolutismo dos donos do veto, que pode servir até para proteger, encorajar ou manter impunes autores de crimes odiosos contra a humanidade numa postura de autêntica cumplicidade.
Por Fred Cawanda (Panapress)
-0- PANA IZ 21nov2011